Dos Processos de Sucessão Familiar, segundo Getulio Ponce Dias:
Onde aprendemos e como intervimos
Começamos a conviver com o tema família nos primeiros anos da década de 1970, como estagiário do curso de psicologia, na unidade de residência psiquiátrica, Divisão Melanie Klein, da UFRGS, em Porto Alegre, RS. Tivemos então o privilégio de participar, interagir e praticar em grupos multidisciplinares, pioneiros, no atendimento de famílias, cujo diferencial – na época – se constituía em que os técnicos não priorizavam o atendimento na unidade, ou consultório, se não que se deslocavam para o serviço no ambiente das famílias. Pessoal e/ou profissional.
A partir desse período passamos a estudar o assunto desde a ótica empresarial. Participamos em dezenas de seminários e até de megaeventos, como os promovidos por John Davis. Também nos valemos de acervos especializados, como o da FBN-Family Business Network, da Suíça que é considerada a instituição mais capacitada sobre o assunto.
Percebemos então que um dos grandes equívocos é o de se tratar Empresa Familiar de forma generalizada, como se fossem todas da mesma espécie. Ignora-se que a maioria delas – no mundo – não está no portfólio das consultorias e, menos ainda, na pauta de estudos acadêmicos. Por isto, propomos agrupar as empresas familiares a partir da realidade brasileira em atual em três espécies:
◊ A primeira espécie, é a que, acreditamos, engloba algo em torno de 88% das Empresas Familiares. Ela se constitui de botecos de esquina, restaurantes, clínicas médicas ou dentárias; ateliê de costura, salões de beleza, escritório de engenharia, empreiteiros em geral, franqueados, dentre outros. Muitos até empregando dezenas de pessoas.
Desde o ponto de vista econômico definiremos este grupo como de Empresas que faturam até cerca de R$ 999.000,00 anuais.
Esses negócios costumam ser pequenos demais para terem relevância financeira sobre o padrão de vida dos herdeiros de segunda geração e, menos ainda, para interessar economicamente aos consultores e advogados dentro do que o mercado considera de alto padrão. Nesse ambiente, as sucessões tendem a acontecer com a ajuda dos contadores que já atendiam a empresa e nem chegam a interessar aos acadêmicos, ocupados com outras prioridades. Em comum, neste grupo, encontramos que quase todos os negócios nasceram, sustentaram uma geração e desaparecem naturalmente. E, se entre os herdeiros houver algum com vocação e perfil, quase sempre resolvem a sucessão segundo os códigos próprios daquela família.
◊ A segunda espécie, que acreditamos estar constituído de cerca de 10% de Empresas, são as de porte médio, cujo processo de sucessão já recebe influência maior do nível sócio cultural da geração que sucede. Desde o ponto de vista econômico situamos aquelas que apresentam faturamento aproximadamente entre R$ 1.000.000,00 a R$ 999.000.000,00. É deste grupo que vamos nos ocupar adiante.
◊ Já a terceira espécie, no outro extremo da curva, encontraríamos algo em torno de 0,5 a 2% das Empresas. O porte delas permite a transmissão de um patrimônio com potencial financeiro de tal ordem, que a maioria dos herdeiros aceita seu quinhão do jeito que as grandes empresas de auditora e os advogados o definirem. A disponibilidade financeira, nestes casos, costuma garantir o padrão de vida pertinente àquela geração e o processo de transferência, depois, vai ocorrendo naturalmente, dentro de diferentes ramos da família.
Dependendo do nível sócio cultural da geração que sucede, podemos catalogar este grupo como aquele que fatura acima de R$ 1.000.000.000,00.
Voltemos então para a segunda espécie, que estimamos como absorvendo cerca de 10% das Empresas familiares, mas que são, justamente, a que estimulam estudos acadêmicos, produção de vasta literatura, mantém institutos e incentivam um ativo mercado de consultores especializados.
Vamos tratar dele aqui, iniciando pelos filtros que usamos para avaliar a probabilidade de sucesso em um projeto:
O primeiro filtro é aritmético: Com ajuda de contadores e/ou economistas, calcula-se quanto gerava caixa a geração que está no poder, a partir do lucro líquido (em seu sentido prático) quando a geração que é está sendo apresentada como sucessora ainda era composta de estudantes. Projetamos o quanto se vai requerer de caixa para garantir as demandas de padrão de consumo (naturalmente crescentes) da nova geração e, principalmente, quando seus filhos forem estudantes. Se a conta fechar, avançamos para o segundo filtro. Se não, recomendamos a venda do negócio enquanto brilha no mercado.
O segundo filtro, está no segmento do(s) negócio(s) herdado(s), ou a ser(em) herdado(s). Esta variável define o tempo que se dispõe para instrumentar o processo e negociar a sucessão. Conforme o grau de conflito intrínseco e a cultura familiar, poderemos prever o grau de assertividade que o projeto tenderá a ter.
Se estivermos tratando, por exemplo, de uma fábrica de cimento, mineração, siderurgia, petroquímica e outras de capital intensivo e demorada maturação, mas de provável consistente retorno, podemos dizer que há tempo para processos e negociações voltados a sucessão familiar porque durante esse período o negócio pode manter um grau de estabilidade capaz de blindar as variáveis externas a ele, que naturalmente acontecerão.
Já se estivermos tratando de uma empresa de grife, com ativos tangíveis de pouco valor proporcional ao valor total da Empresa, mas com intangíveis de grande valor (por exemplo, marca, processos produtivos, softwares), certamente não haverá tempo disponível para demoradas e complicadas negociações. O tempo usado na negociação, em muitos casos, e os efeitos que causa sobre o negócio em si, tende a transformar esse ativo intangível em pó.
O terceiro filtro, diretamente vinculado ao primeiro, se refere ao grau possível de profissionalização, naquele negócio. Escrevemos grau de profissionalização possível porque, nesse porte de Empresa, a profissionalização sempre existe em determinadas áreas, especialmente nas operacionais.
Para saber a factibilidade de uma eventual proposta de profissionalização da gestão estratégica do negócio será preciso saber em que grau as margens mais prováveis de caixa a serem geradas garantirão o investimento necessário em profissionais – executivos – com salários de mercados. Salários estes que devem ser multiplicados – no mínimo – por três. Se a resultante de caixa sinaliza uma disponibilidade para os familiares que atendam sua expectativa de padrão nos termos citados no primeiro filtro durante períodos superiores a três anos, podemos afirmar que o processo de profissionalização é factível.
Improvisações e economias na aplicação de modelos de profissionalização na gestão estratégica do negócio quase sempre levam todas as partes perder, resultando na perda de valor do negócio.
O que acreditamos, vale para todos os casos:
Ao garantir escolhas e estimular grandes períodos de estudos ou ócio, por que não avisaram o herdeiro, ou potencial herdeiro, de que ele não teria escolha, devendo ao menos um dia sentar-se diante de sócios e/ou profissionais? Por que não o colocaram desde cedo dentro do negócio para aprender suas características, mercado, know how, arquitetura política, linguagem etc.?
Todo liberalismo propagado por teses resultantes de determinados especialmente por segmentos da psicologia, sociologia e escolas de administração de empresas, que em geral resulta em uma infância e adolescência alienada do negócio, esconde uma realidade: de uma forma ou de outra, este mundo protegido termina no exato instante em que se recebe uma Empresa como herança!
Neste momento terá de sentar-se à frente de colaboradores, contadores, marqueteiros, advogados, auditores, fornecedores e outros stakeholders, se comunicando através de jargões peculiares, com responsabilidades, riscos e, finalmente, diante de novos sócios que não escolheu e que nem consideraria todos como bem-vindos.
Mas por isto a tese da profissionalização já referida, nestes casos, não seria o melhor caminho?
Pelo que descrevemos a conclusão é: Em certos casos, onde o porte e as margens de ganho da Empresa permitem, pode ser uma excelente solução. Mas não é receita para se generalizar, apesar do que é sustentado por modelos de governança pré-fabricados, fora de a possiblidade do negócio gerar os recursos para bancar o processo e a família.
Lembremos que os movimentos da economia são cíclicos e que se não estamos tratando daquele grupo de Empresas que catalogamos dentro dos 1 a 2% do total, os ciclos afetarão os orçamentos familiares dos herdeiros, quase sempre acostumados a viver a margem de crises.
Quando a sobra de caixa, em determinado contexto de mercado, não puder remunerar toda a estrutura profissionalizada mais a familiar e seus custos ocultos, a tendência será esquecer toda a tese e os herdeiros – pobrezinhos – compulsoriamente assumirem o comando de um negócio de que não sonharam e para cujos bastidores não foram preparados. É só analisarmos os registros históricos, mundiais, sobre o assunto para concluir sobre o próximo passo quando os sucessores retornam, por isto é muito provável que, sob o ponto de vista patrimonial, melhor seria que esse passo tivesse ocorrido antes.
O que há de novo nos processos de sucessão de empresas familiares?
Afirmam alguns especialistas que em 2005 teria nascido o primeiro ser humano que irá viver 200 anos! Sem entrar na análise da relação ficção/realidade podemos avançar com o que já se pode afirmar, hoje:
Um empresário que está na faixa dos 50-60 anos terá – no mínimo – mais 35 a 40 anos de vida produtiva.
Ora, se não ignoramos esta realidade, será fácil concluir que a quase totalidade dos modelos e literatura disponíveis sobre sucessão estão obsoletos. Simplesmente porque a segunda geração só assumirá o negócio, de fato, entre os 60 e 70 anos, o que, se assim ocorrer dentro dos modelos hoje divulgados, nos oferecerá pessoas sem experiências e vivências adequadas.
Estamos convictos de que uma grande transformação está por ocorrer nesses processos, visto que – ao menos no segundo grupo a que nos referimos – o que se aplica atualmente só serviriam para aplicação com os netos dos patriarcas. A segunda geração estaria, portanto, vivendo apenas de mesada.
Nós já abandonamos modelos e técnicas que usamos até poucos anos atrás!
Conclusões:
Esperamos ter deixado claro nossa convicção de que um processo de sucessão em empresas familiares depende, acima de tudo, do segmento e do porte do negócio e que só se consolida quando de uma negociação e/ou renegociação societária, na passagem de alguma geração para outra. Durante muitos anos nos dedicamos a estudar cases de empresas que estavam sob controle de uma mesma família e em nenhum deles encontramos todos os irmãos, primos, sobrinhos descendentes do(s) criador(es), juntos, como controladores. Nem a maioria.
O que se constata é uma sucessão sob um sobrenome de família, mas com poucos sucessores no negócio, por isto estamos convictos de que a melhor solução em torno da negociação para realinhamento societário deve acontecer sob os valores das raízes culturais da família. Árabes muçulmanos? Árabes cristãos? Judeus? Italianos? Japoneses? Espanhóis? Vira-latas (na expressão de Nelson Rodrigues)? Em que estado brasileiro ou região do planeta? Tudo isto tende a fazer muita diferença, por isto não pode ser ignorado por quem for responsável técnico pelo processo.
Todos os processos de realinhamento são mais ou menos traumáticos, variando de caso a caso, com ou sem entrada de terceiros. Lembramos, novamente, que estamos tratando aqui daquelas aproximadamente 10% das Empresas Familiares, na forma com que catalogamos antes porque nos demais casos as teses poderão se mostrar úteis, ou não.
Só quando chegamos a uma nova estrutura societária, numa determinada geração, com ou sem profissionalização, que o processo recomeçará, produzindo uma sucessão de fato. Então, dependendo do talento de quem, ou da sinergia do grupo, que assumir, reposicionando o negócio e o colocando em um dos grupos que catalogamos como 88, 10 ou 2%!
De qualquer forma, quanto mais cedo iniciamos o processo, melhor. Preferimos trabalhar os potenciais herdeiros quando ainda muito jovens e atualmente priorizamos o que denominamos Assistência Técnica. Isto significa acompanhar o herdeiro no maior número possível de atividades profissionais, observando falas e atitudes, para depois discutir os efeitos de cada uma delas – implícitas e explícitas – e/ou transferindo técnicas e/ou recomendando busca de conhecimentos. Com tal técnica eles vão sendo preparados através da interação do negócio com seus mercados, de sua forma de liderar pessoas e processos inerentes ao negócio e as disputas de espaço dentro da família.
Afinal, perfil e talento, em nenhuma área, são hereditários. Tenham sido eles Mozart, Pelé ou Jorge Amado. Também que as Faculdades de Belas Artes podem desenvolver e aperfeiçoar talentos, mas não os criam.
Por isto, é preciso ter em conta que se no grupo sucessório houver alguém com perfil de Empresário, isto é, um intelectual que, em vez de escrever poesias monta empresas, no dizer de Ferreira Gullar (Revista Veja, edição nº 2288 de 26.9.2012) a sucessão acontecerá a partir de determinado ramo sucessório. De qualquer forma, pouco se desenvolvem negociadores, esquecendo que toda Gestão requer determinado grau de negociação, mas nem toda negociação envolve gestão!
E, a partir da década de 2020, outra questão se consolidará: Com uma geração – particularmente no caso da primeira – hoje com previsão de vida ativa depois dos 95 anos, irá preparar a próxima?
Seja como for, acreditamos ser muito arriscado transpor uma experiência bem-sucedida para outra realidade. Especialmente a partir de agora, com um este novo contexto decorrente de novos ciclos de vida produtiva.
E se antes valia o lugar comum segundo o qual cada caso é um caso, agora com mais segurança se poderá afirmar que aqueles que indicam previamente um caminho, seja qual for, são – no mínimo – uns desavisados.
Nota: O conteúdo e parte da fundamentação que embasa este texto estão em estruturação e deverão estar disponíveis em obra específica. Materiais esparsos, publicados em artigos e entrevistas também podem ser encontrados em páginas deste site.